sábado, julho 17, 2004

Sou eu?

Palavras da minha melhor amiga Camila: "Vou te mandar um poema. Já te mandei, não sei se lembra. É você duplamente".

A bailarina agora está dançando
a dança de perder tudo quanto possuía.
Deixar cair tudo o que nela havia,
seus pais e irmãos, pomares e campinas,
o rumor de seus rios, os caminhos,
o conto de seu lar, o próprio rosto,
seus nome e seus brinquedos infantis,
como quem deixa tudo quanto teve
tombar de seio, de regaço e de alma.

Na lâmina do dia e do solstício
baila sorrindo o seu despojamento.
O que atiram seus braços é esse mundo
que ama e detesta, que seduz e mata,
a terra que se apresta a colher sangue,
a noite dos saciados que não dormem
e o mal-estar dos que não tem pousada.

Sem nome, raça ou credo, desnudada
de tudo e de si mesma, ela se entrega
pura e formosa, com seus pés voadores
sacudida como árvore e no centro
do redemoinho, feita testemunho.

Não está dançando o vôo de albatrozes
salpicados de sal e jogos de ondas;
tão pouco os alçamentos e a derrota
dos canaviais com força fustigados;
tão pouco o vento agitador de velas,
nem o sorriso dos mais altos caules.

Não lhe dêem o nome de batismo.
Soltou-se de sua estirpe e sua carne,
sufocou a cantiga de seu sangue
e a balada de sua adolescência.

Sem saber, nossas vidas lhe atiramos
como escarlate veste envenenada;
e baila assim mordida de serpentes
que alacremente e livremente a atingem
e fazem-na cair em estandarte
vencido ou em grinalda espedaçada.

Sonâmbula, mudada no que odeia,
sem saber de si mesma dança, alheia,
seus gestos distribuindo e recolhendo,
portadora de nossos estertores,
cortando os ares que não mais refrescam,
única e torvelinho, vil e isenta.

Ah! Somos nós seu ofegante peito,
sua etérea palidez, o louco grito
lançado para poentes e nascentes,
o violáceo calor de suas veias
o abandono de Deus de sua infância.
                    ("A bailarina", Gabriela Mistral)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deite no Divã e abra o bocão!